Forte do Picão: a resistência da capitania destruída em nome do “progresso”

Construído por volta do século XVII na entrada do Porto do Recife, o Forte do Picão foi destruído no início do sec. XX para dar lugar as obras de modernização

Por: Julianne Mendonça 
julianne-ccs@ufrpe.br

Ícone dos brasões do Estado de Pernambuco e da cidade do Recife, presença confirmada no primeiro mapa pernambucano, na primeira fotografia e cartões postais da Capital e no primeiro filme gravado em terras pernambucanas, o Forte de São Francisco, ou do Picão, foi apagado da paisagem e esquecido pela tradição.

Por quase quatro séculos, a primeira paisagem avistada pelos que chegavam em Pernambuco era dele, do litoral, o Forte do Picão se destacava no horizonte, o primeiro Marco Zero do Recife e maior ponto de referência, servia de baliza e proteção na entrada do porto.

Desde o começo da ocupação portuguesa, os reinos perceberam a urgência de levantarem sistemas defensivos capazes de suportar as incursões marítimas de navios estrangeiros, piratas e corsários que tentavam saquear e destruir os povoados de Pernambuco.

Centro de grandes riquezas naturais, como o pau-brasil e o açúcar, responsáveis por boa parte da economia da época, Recife se via sob constantes ameaças. Como solução, as construções dos Fortes de São Francisco (Picão) e São Jorge, fechando o acesso para o Porto, foram decisivas no delineamento desse sistema defensivo compatível com os padrões da moderna engenharia militar do final do sec. XVI.

Mas, a história da construção do Forte do Picão é rodeada de controvérsias, desde o formato e aspecto físico de sua estrutura, até o ano de construção e financiamento. Alguns escritores indicam o ano de 1608, outros o de 1614. O autor Pereira da Costa alega que de acordo com o “Livro que dá razões ao Estado do Brasil”, o forte fora iniciado em 1612, às custas dos moradores locais e do senhor de terras, Duarte de Albuquerque Coelho (o mesmo que nomeia a ponte Duarte Coelho, no centro do Recife). Por outro lado, Pereira também apresenta uma segunda possibilidade, a de que o forte teria iniciado anos antes, no governo do terceiro donatário, Jorge de Albuquerque Coelho (1578 – 1602), logo após a conclusão do Forte de São José, no istmo do Recife.

Diferente desse autor, José Luís Mota Menezes e Maria do Rosário Rosa Rodrigues, apresentam uma lista de fortes brasileiros do sec. XVI e seus anos de construção. Nela, o Forte do Picão é datado de 1591, seis anos antes da conclusão do Forte de São Jorge, no continente, por ordem do governador-geral da Bahia, Diogo Menezes e Sequeira. Sendo assim, o Picão teria sido o primeiro forte em terras pernambucanas e o 11° em terras brasileiras.

O pesquisador da UFRPE e escritor do livro ‘Um forte sobre as águas’, Jacques Ribemboim, explica que a incerteza das datas se dá pelo fato de que o forte estava presente em documentos de diferentes épocas, como o 1° mapa da Capitania, datado de 1578. “Existem muitas versões sobre a construção do forte, a primeira é que ele já havia sido planejado por isso é visto em alguns documentos da época, outra é que o forte já havia sido construído, de forma mais rudimentar, em madeira e por fim, a versão oficial que data de 1614, com a sua finalização em pedra”, explica Jacques.

Mesmo com todas as divergências, o Forte de São Francisco, foi sinônimo de defesa e como afirmam João Braga e Carlos Bezerra Cavalcanti no livro “O Recife e seus Bairros”, representou fortemente o papel decisivo na resistência da capitania contra a armada flamenga, em 1630, “combatendo bravamente os holandeses”. 

O Forte do Picão, que junto ao Farol do Recife, “cercavam” o Porto Recifense, veio à baixo em 1910, para dar passagem aos vagões que levavam pedras para as obras de prolongamento dos trilhos de trem.

Em nome do progresso, o forte do Picão foi abandonado e sua importância foi –e ainda é- negada, como afirma o autor Hermes Vandereli no livro ‘O Farol do Picão’.

 “Mas um dia –não sei porque- arrancaram a luz bonita do farol, que era um símbolo identificado com o Recife, e lhe deram por substituto um triste vagalume, insípido e sem vida. Hoje, o velho farol e o Forte do Picão são dois túmulos encravados nos arrecifes, somente o mar não os abandonou e embala-os com a mesma canção, como nos primeiros dias em que a mão do homem os ergueu ali”.

Matias de Albuquerque: a cabeça contra o Domínio Holandês

Neto de Duarte Coelho, primeiro donatário da capitania, e filho de Jorge de Albuquerque, um forte guerreiro do seu tempo, Matias de Albuquerque recebeu a missão de defender as terras de sua família contra os holandeses.

Com a cotação do açúcar em alta no mercado internacional, o interesse estrangeiro pelas riquezas pernambucanas aumentou cada vez mais. Recife estava sob constante ameaça de invasão holandesa.

No dia 14 de fevereiro de 1630, os holandeses chegaram em Pernambuco e desembarcaram na praia de Pau Amarelo e, apesar da resistência do Matias, que já vinha se preparando para o ataque, logo se apoderam de Olinda e do Recife — que, por ser mais fácil de defender militarmente, foi escolhida para ser sua capital.

O Forte do Picão cercado pela frota holandesa, e os armazéns do Recife sendo incendiados. Olinda de Phernambuco, 1671 (circa), água forte sobre papel. Visscher (Piscator), John Olgilby. Gallica, Biblioteca Nacional Francesa.  Coleção pessoal de Jacques Ribemboim.

Como parte do plano de ataque, o Forte do Picão desenvolveu um importante papel na luta contra os holandeses. Gravuras da época mostram a ocorrência de uma batalha aquática no Porto do Recife, onde pode-se ver embarcações afundadas para proteger a entrada da barra e tiros de ambos os lados, inclusive do Forte do Picão.

Embora tenha sido derrotado, Matias de Albuquerque não desistiu sem antes lutar e não deixou o Forte se render. Como mais uma de suas estratégias, decidiu incendiar todos os navios que bloqueavam a entrada do Porto, assim como toda a carga de açúcar, pau-brasil e demais produtos “Matias sonhava em aumentar a defesa do Forte, que apesar de presente, ainda era frágil, frente aos holandeses. Como estratégia ele decidiu incendiar todo o estoque de produtos pernambucano, na intenção de distrair os holandeses, já que era nossas riquezas que eles buscavam. Os holandeses recuaram por um tempo e desembarcaram em Pau-Amarelo, onde foram dominando pequenos espaços locais, até voltar ao Recife”, conta Ribemboim.

Mas, em 03 de março de 1630, Matias de Albuquerque e seus companheiros renderam-se, não por falta de forças, mas devido as condições em que se encontravam. A falta de água e a rendição do Forte de São Jorge foram elementos decisivos para a rendição do Forte do Picão, que acabou sucumbindo, mas não sem uma luta forte e heroica.

O Recife Holandês

Embora conturbada, a invasão holandesa trouxe ao Recife a expansão dos negócios da cana, tornando-a uma das cidades mais importantes do Novo Mundo e sede do governo do Brasil Holandês, desenvolvendo e ampliando suas atividades. 

Sob administração de Mauricio de Nassau, Recife passou por diversas mudanças e dividiu-se em um núcleo urbano, o Porto e a Cidade Maurícia – que hoje correspondem aos bairros de Santo Antônio e São José- desenvolvida pelo arquiteto Pieter Post para ser sede do seu governo e local de residência.

Vista da Cidade Maurícia, Frans Post, ost, 1657. Coleção pessoal de Jacques Ribemboim

Recife passou por uma importante urbanização, foram construídos pontes, canais, diques e edifícios, além do jardim botânico, o museu natural e o observatório astronômico, o primeiro da América. Outros arquitetos e engenheiros auxiliaram na urbanização de Recife, focando principalmente no saneamento básico.

Em 1638, para reforçar o papel defensivo da cidade, Nassau ordenou a restauração do Forte do Picão, desenvolvida por engenheiros holandeses, que por serem de religião protestante, decidiram retirar os nomes de santos católicos dos fortes de São Francisco (Picão) e São Jorge, passando a chamá-los de Castelo do Mar e Castelo da Terra, respectivamente. Também é desta época a construção de diversos outros fortes à beira do mar, como o Forte do Brum e o Forte Orange, visando o fortalecimento da defesa das áreas ocupadas, além, claro, da ampliação dos limites do Recife para fins residenciais.

Com a reorganização e urbanização do Recife, a cidade passou a receber muitos intelectuais e pessoas interessadas na riqueza natural, assim como no comércio que tinha ganhado ainda mais força. Mas o Recife Holandês não resistiu por muito tempo, a forte oposição dos portugueses devido aos impostos e questões religiosas, acabou resultando na insurreição pernambucana, que logo veio a expulsar os batavos das terras Nordestinas.

Entre idas e vindas, batalhas e conquistas, Recife teve sua história transformada e anulada, com o decorrer do tempo. O Forte do Picão foi demolido e a identidade pernambucana deteriorada.  “O Forte, se reerguido, funcionaria não só como um instrumento de resgate da nossa história, mas da identidade que perdemos. Seria a reconstrução da autoestima do antigo Recife Açucareiro, hoje conhecido apenas por parte da população”, afirma Jacques Ribemboim.

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